LENDA DE LINDA-A-VELHA
Naquela tempo recuado, num ponto elevado das vizinhanças de Lisboa, existia um pequeno castelo com uma bela torre, à volta do qual se desenvolveu uma povoação. Num varandim da torre, virado ao rio, costumava sentar-se pela tarde uma velhinha de cabelos branquíssimos e rosto entranhadamente limpo de rugas, como se o tempo só lhe tivesse passado pelo corpo e a alma tivesse ficado incólume e esquecida noutras épocas.
As raparigas da povoação, quando calhava por ali passarem, ficavam extasiadas ante aquela beleza calma que dia a dia viam olhando longamente o estuário do Tejo como quem espera, esperando sempre o que já se não espera voltar a ver. Mas a velhinha sorria, sorria, como quem sorri para alguém que ama e está presente ainda que ausente. E as raparigas olhavam a torre e a velha e diziam:
- Como é bonita a velha!
- Linda a velha!
Curiosas, as raparigas interrogavam-se muitas vezes sobre a vida que teria vivido a velhinha da torre e imaginavam mil e umas vidas, que a castelã nunca vivera. Certa tarde em que se entretinham neste passatempo, passou por ali uma anciã da aldeia e ouviu a conversa das raparigas. Enquanto descansava sentada numa pedra foi ouvindo as divagações das mossas e, a certa altura, não se teve que não as interrompesse:
- A vida dela, minhas filhas, não foi o que estais para aí imaginando.
- Então a tiazinha conhece a história da castelã?
- Claro que conheço. E qualquer outra pessoa do meu tempo a conhece também.
- Então conte, por favor, conte!
Enquanto a tarde ia caindo docemente sobre os campos e reflectindo no rio e no mar cores miríficas e inimagináveis, a velha começou a contar:
- Quando eu era nova, e ela também, eu trabalhava nas cozinhas do castelo. A senhora era então uma bela rapariga de cabelos muito negros que toucava de véu e jóias. Nessa altura, o castelo era um corrupio de gentes, especialmente cavaleiros e jograis, jovens e velhos, que vinham cortejar a minha senhora. Mas ela, que a todos sorria delicadamente, recebia as homenagens que lhe prestavam corando, e sempre que podia escapava-se para os seus quartos, na torre, porque era ciosa de si e no fundo aborrecia-a tudo aquilo, talvez por não gostar de ninguém.
As paredes deste passo, meninas, viram mais moços fidalgos que castelo de rei e ouviram mais cantares ao luar que moura de história já cantou em noites de São João.”
“Acho que estes cantares e as homenagens dos fidalgos agradavam à minha senhora. Muitas vezes a vi sorrir, sem que dessem por ela. Mas era só à vaidade que aquilo agradava porque nunca ela cortejou ninguém, até que
A velha fez uma pausa quem sabe para se recordar os pormenores da história. Fechou os olhos por uns segundos e apareceu às raparigas que aqueles olhos estavam fechados à uma eternidade, tal a tenção e curiosidade com que seguiam a narração:
- Então, tiazinha, e depois! Não vá adormecer agora! O resto, o resto! …
- Calma, minhas filhas! Estou velha e a memória das coisas escapa-me. Vamos lá a ver se me recordo bem.
- A tiazinha está é a meter-se connosco! Não há direito de nos fazer sofrer! Conte, Conte!
- … Até que um dia apareceu um moço fidalgo. Chegou num alazão e trazia às costas uma viola. Ela recebeu-o como os outros, mas para ela, ele não foi mais como os outros, «Reparei, a hora da ceia quando servi os fidalgos um faisão recheado de nozes, que os olhos da minha senhora viram os do fidalgo, que, na ponta da mesa (por ser mais novo que os outros e recém chegado), se esquecera até da taça de vinho que tinha na mão. Não se falaram, nem uma palavra de cortesia sequer, mas que os olhos da minha senhora ficaram brandos e brilhantes.
«Pela noite estava já o paço descansado, ouvi um tanger de viola, tão lindo, tão suave como nunca ouvira antes nenhum. Enquanto o moço começava uma balada cheia de uma dor qualquer, vesti-me e saí a espreitar.
«Espreitar. Viu-o a ele, ali debaixo daquela árvore que fica em frente da varanda, de pé, olhando o mar. E via-a a ela, que nunca vinha à janela fosse quem fosse que cantava. Quando a música acabou falaram-se: ela do balcão; ele, ali debaixo. Tive vergonha de estar à espreita, e medo de ser vista e apanhada.
Voltei para dentro e deitei-me a dormir porque o meu dia não era como o dos fidalgos e ao alvorecer já eu tinha de acender o lume da cozinha, arear os tachos de cobre, amassar o pão e muitas vezes carregar a lenha ou ir apanhar a fruta ao pomar. Bem vêm, eu era a mais nova na cozinha e faziam de mim gato – sapato. Depois…
- Ora, tiazinha, isso não interessa! Conte mas é o resto da história da velhinha do castelo!
- Vá lá a gente querer contar alguma coisa da nossa vida!... Já nem os pobres querem saber da vida dos pobres!... Mas, então vá lá, ouvi o resto…
«Estava eu contando da serenata do moço… Pois a minha senhora apaixonou-se pelo fidalgo, que ele já o estava por ela. Presos um no outro, nem deram por que os outros convidados, ao verem aquela paixão, iam saindo do castelo, desenganados, definitivamente.
«Acontece que nessa, altura, o Papa e el-Rei pregaram uma cruzada e chamaram os fidalgos. E Também o cavaleiro-trovador teve de se preparar para partir para além-mar, para a Palestina, a combater os infiéis.
«Caiu então sobre o castelo uma névoa de tristeza.
Muitas vezes vi lágrimas brilhando teimosas no canto dos olhos da minha senhora. Uma noite, que foi a última, ouvi uma serenata do cavaleiro, mais doce e triste que nenhuma outra, cheia de dor de partida tão grande que até a mim magoou o coração. E nunca mais o vi.
No dia seguinte, a minha senhora, logo pela manhã, subiu à varanda da torre, donde se vê a praia e o mar. Todo o dia lá ficou. Quando subi a levar um caldinho – que ela nem tocou! - , olhei para as bandas do rio e vi os barcos que se aprestavam para partir, os batéis que iam e vinham coloridos de cavaleiros e pajens, cheios de provisões, as barcaças que transportavam os cavalos de guerra até às naus engalanadas de festa.
À tarde, eu quis ir ver a partida. Quando saí do paço vi a minha senhora lá no alto da torre olhando as velas que no mar já enfunavam de vento. Corri o mais que pude para não perder a partida – eu era nova, então, e as pernas obedeciam à minha vontade. Cheguei ainda a tempo de me juntar ao povo que na praia agitava os chapéus aios que partiam. E imaginei no alto da torre um lenço branco ondulando na brisa que levava os barcos rio abaixo, rio adiante, mar sem fim, até ficar embebido, como as velas, no sal do mar, no sal do corpo.
Quando retomei ao paço, a minha senhora rezava na capela. Dias e dias rezou ajoelhada na laje fria, até que a certa altura voltou à torre. Dali olhava o mar esperando uma vela branca não mais voltou…
«Soube-se, mais tarde, no Reino, que ao atravessar as longínquas Colunas de Hércules uma tempestade terrível fez naufragar o navio em que partira na esperança de voltar o cavaleiro-trovador. Ninguém ousou dizer-lho a ela, mas creio que o adivinhou na própria hora da desgraça põe essa estranha maneira de comunicar que têm os seres que se amam.
«Correram-lhe as lágrimas a fio, durante muito tempo. Depois secaram e o cabelo embranqueceu-lhe. Eu casei e saí do castelo porque o meu homem precisava de mim na horta. No entanto, nunca deixei de ver a minha senhora porque ela não mas largou a sua torre e a varanda sobre o rio.
«Hoje já não espera o seu trovador. Espera o tempo, o seu tempo, como eu espero o meu…
A velha calou-se. Fez-se um silêncio quem sabe se de respeito. Se de nostalgia, se de uma certa saudade de um amor assim, que se não teve e desejava ter tido.
A velha levantou-se por fim e partiu para casa porque a noite já ali estava roçando o seu manto pelos corpos recostados nas árvores. Levantaram-se as moças também, em silêncio.
Mais uma vez olharam a doce velha que na torre do castelo já mal se via e uma delas murmurou:
- Linda a velha!
O tempo que a linda velhinha esperava chegou por fim. E veio outro mais longo que derrubou os muros do velho paço e da sua torre. Mas este longo tempo que chegou poupou a povoação, de que não conheço o nome antigo, mas que a lenda chama, ainda hoje, Linda-a-Velha.